HISTÓRIA DA REUMATOLOGIA PORTUGUESA SEGUNDO O LIVRO:
"50 Anos de Reumatologia em Portugal (1948 - 1998)" de Robert Pereira Martins
III CARTA DA REUMATOLOGIA EM PORTUGAL ATÉ 1948
Meu Caro Interno
Vejamos agora o que se passou em Portugal. Verifica-se que os tratadistas de História Pátria se tem interessado sobretudo com os aspectos politico-militares, económicos e sociais e daí os elementos disponíveis no que à Medicina se refere não serem abundantes, e quanto à reumatologia, serem escassíssimos e tanto mais escassos quanto mais recuamos no tempo, e nem sempre de autenticidade comprovada (e/ou comprovável).
Parece, porém, que já no período lusitano-romano, por provável romanização, eram usadas águas termais no tratamento de queixas do aparelho locomotor, como o revelam ruínas de velhos balneários nas Caldas de Canavezes, Caldas das Taipas, Caldas de Vizela, Chaves ( a Acqua Flavia dos romanos), Curia, S. pedro do Sul. A denominação Caldas, que muitas Termas têm, vem de caldus,a,um (quente).
No período medieval, que não é aquela noite de mil anos, como escreve Michelet, pois deu à Humanidade muitos dos seus valores, temos a registar:
- D. Afonso, o Conquistador, frequentou o "Balneum" das Termas de S. Pedro do Sul para se tratar das sequelas da fractura que sofreu no cerco de Badajoz ou, da artrose secundária àquela ou à má consolidação.
A Medicina é denominada por conceitos e tratamentos galénico-arábicos.
- No Séc. XIII encontramos duas figuras notáveis da nossa Medicina:
- O famoso dominicano Dr. Gil Rodrigues de Valadares, que estudou no Colégio de Santa Cruz de Coímbra e cursou Medicina em Paris de forma tão brilhante que foi tida por diabólica ou por acção divina... Foi médico de D. Sancho II e D. Afonso III, este, como ele um gotoso. É de tradição ter sido o autor da mais antiga obra médica portuguesa. A lenda popular aureolou-o e ficou na história como S. Frei Gil de Santarém (Fig. 25).
- Pedro Julião ou Pedro Hispano, filósofo, escritor, e médico, subiu ao sólio pontifício como João XXI. Tido pelo mais brilhante espirito da Europa medieval, já há 700 anos tinha ideias precisas sobre a prevenção, que nos reumatismos será a consagração internacional de Assunção Teixeira:
"Uma vez que é melhor preservar a saúde do que lutar contra a doença, deve tratar-se da dita saúde. Saúde é uma disposição que conserva o que é natural no homem, segundo o curso da natureza. Pois como o corpo humano é susceptível de corrupção... são-lhe necessárias regras de físicos pelas quais se defenda de acidente. É que é mais útil prevenir as doenças do que, uma vez contraídas, andar a pedir um auxílio que provavelmente é impossível".
- Nos fins do séc. XV, essa figura ímpar que foi a Rainha Dona Leonor de Lencastre (Fig. 26), protectora das artes e das letras, decide mandar edificar o Hospital Real das Caldas da Rainha, o mais antigo do Mundo para o tratamento do reumatismo.
Conta a tradição (as Pátrias sempre se construíram com tradições e por elas sobrevivem) que indo a rainha de viagem vira alguns pobres metidos em águas cálidas que saíam da nascente fumegando e ao indagar informaram-na serem doentes de "frieldades" que nessas águas encontravam alívio dos seu males e que muitos "tolhidos" saravam e então teria dito "se o Senhor Meu Deus me der vida, os pobres de Cristo, Seu Filho, terão melhor comodidade em sua cura" E assim, nesse sítio, "com uma casa de pé, sem haver nos arredores mais que matos maninhos e ameais e alguns campos lavradios" no termo da sua vila de Óbidos, se vão iniciar, em 1485, as obras de edificação, que a Rainha dirigiu pessoalmente, apoiada pelo seu médico, António Lucena e o primeiro provedor, Álvaro Dias Borges. Reza a tradição ter a rainha vendido parte das suas jóias para manter as obras. Em 1488, D. João II fundou a vila das Caldas, com 30 vizinhos, desanexando-a da de Óbidos e D. Manuel I deu-lhe foral.
Esse magnífico Hospital, um dos melhores do seu tempo, deve ter-se concluído à volta de 1512, pelo menos é dessa o "Compromisso" (Fig. 27) isto é, o Regulamento, redigido pela rainha, ou pelo menos por ela inspirado, ainda hoje, um documento notável, foi enviado ao Cardeal de Alpedrinha para ter a aprovação pontifícia.
Dispunha de 100 camas; 60 nos dormitórios dos homens e das mulheres (metade para cada), 20 reservadas a religiosos e pessoas "honradas" e 20 para peregrinos e servos da casa. O Serviço era assegurado por um "quadro" seguinte: 1 vigário perpétuo e 3 capelões; 1 provador (clérigo ou leigo, mas não frade, comendador ou pessoa poderosa), 1 tesoureiro, 1 almoxarife e 1 escrivão; 1 físico, 1 cirurgião, 1 sangrador, 1 boticário, 1 spitaleiro, 3 enfermeiros (2 homens e 1 mulher) e pessoal para o serviço (amassadores, lavadeiras, pastores, etc.).
Possuía Livro de Receitas e Despesas, tombo de bens e doações, cadastro de doentes e de óbitos.
A Rainha doou parte do seu dote em dívida pela Coroa e o produto do resto das suas jóias (no valor de dois contos trezentos e seis mil reis) e rendimentos nas suas vilas de Óbidos, Aldeia Galega da Merceana, Alenquer, Cadaval e Alvorninha para a manutenção do Hospital. Por breves de Júlio II e Leão X, o dízimo das terras de cultura da vila e termo das Caldas, revertia para o Hospital também.
D. Manuel concedeu ao Hospital 15 arrobas anuais de açúcar, na época medicamento precioso e caro.
Ainda nesse século XVI (se há um século de Portugal, é esse):
- Nos Colóquios dos simples e drogas e coisas medicinais da Índia, de Garcia de Orta e na Farmacopeia, de Zacuto Lusitano, referência a drogas e plantas usadas no reumatismo.
- O Dr. João Rodrigues de Castelo Branco, o Amato Lusitano (Fig. 28), figura notável da Europa do tempo deixou descrições e comentários sobre podagra, lumbago, artrite, tofos nos seus Curationum Medicinalium Centuria Septem, uma das mais famosas obras médicas da Renascença.
- Séculos XVII e XVIII, influenciado pelas doutrinas dominantes na Europa da época, encontramos algumas prescrições curiosas para tentar tratar os reumatismos nas obras do Dr. Reis Tavares e na Polyanthea Medicinal de Curvo Semedo.
Os portugueses com queixas articulares continuavam a ter como terapêutica dominante ou quase exclusiva, a cura termal nas Caldas da Rainha e D. João V aí foi por 13 vezes tratar a sua gota, tendo encarregado Manuel da Maia do restauro e ampliação do Hospital (Fig. 29).
No século XIX, quando o tratamento termal se tornou em toda a Europa, um ritual social (recordemos que na Europa Central os grandes centros de Reumatologia estão em termas), as Caldas da Rainha foram a Meca médica dos "reumáticos" e "artríticos" portugueses, havendo famílias portuguesas nas quais várias gerações aí fizeram a sua cura termal, ainda a fazem e esperemos que continuem a fazê-lo, se por obra da natureza ou dos homens, as águas não desaparecerem ou se enquinarem!
- Na segunda metade do século XIX e na primeira metade do actual, Portugal não deixou de beneficiar do extraordinário desenvolvimento da medicina e para ele contribuir.
Meu Caro Interno, quando em cartas seguintes lhe for relatado o nosso atraso na Reumatologia não vá daí deduzir "atraso" na Medicina. Só que as preocupações estavam orientadas para patologias prevalecentes (ou tidas como tais): a tuberculose e as restantes doenças infecto-contagiosas; a sífilis, tida como uma chaga médico-social, "responsável" por todas as desgraças do País; as doenças materno-infantis, as doenças mentais e o cancro. O Reumatismo, que personalizamos, tido como sinónimo de decrapitude, imperfeitamente conhecido, sem terapêutica mesmo sofrível e de curso inexorável para a deformação e a invalidez, não mereceu (nem merece, ao que parece) interesse.
Mas o nível da nossa Medicina pode avaliar-se pela enumeração de alguns nomes: clínicos como Pulido Valente, Fernando da Fonseca, Oliveira Machado, Carlos George, Eduardo Coelho, Vaz Serra, Cascão de Anciães, João Porto, Rocha Brito; cirurgiões como Reinaldo dos Santos, Bissaia Barreto, Magalhães Coutinho, Adelino Costa e Ângelo da Fonseca; alienistas como Egas Moniz, Elísio de Moura, Júlio de Matos, Miguel Bombarda, Sobral Cid, Magalhães Lemos; Câmara Pestana, na Bacteriologia; Gama Pinto, na Oftalmologia; os anatomistas e histologistas, José António Serrano, Celestino da Costa, Xavier Mourato, Maximino Correia, Abel Salazar; o sanitarista de mérito internacional Ricardo Jorge, que presidiu em Lisboa ao XI Congresso Internacional de Medicina; Francisco Gentil, o pioneiro e criador da Oncologia Portuguesa; acção notável da Rainha D. Amélia e do Dr. António de Lencastre, na luta contra a tuberculose, criando o 1.º Sanatório (mais tarde quando a Medicina decretou, erradamente, a cura da tuberculose, toda essa obra foi desmantelada); na assistência à criança, a acção de outra notável rainha precocemente desaparecida, D. Estefânia, com a criação do Hospital que ainda tem o seu nome; até na História da medicina, é de evocar Maximiano de Lemos e Luis de Pina.
Só a Reumatologia permanecia a Bela Adormecida!
Mas, volvidos mais de 30 anos sobre o apelo de Van Breemen, a sua mensagem ía chegar a Portugal.