As causas e mecanismos fisiopatológicos deste fenómeno de sensitização central são múltiplos, sendo o mais habitual que vários destes processos estejam presentes simultaneamente em cada doente, contribuindo sinergicamente para o desenvolvimento não apenas da dor mas também dos restantes sintomas que constituem o complexo quadro clínico da fibromialgia.
Primeiro, a genética. Certas variantes genéticas, presentes de forma isolada ou concomitante em muitos destes doentes, modulam o risco de desenvolver quadros dolorosos crónicos, influenciam a percepção da dor (pela síntese de maiores ou menores quantidades de opióides endógenos ou óxido nítrico, por exemplo) ou alteram os mecanismos farmacodinâmicos que controlam aspectos qualitativos e quantitativos da acção das terapêuticas analgésicas3. Certos genes envolvidos em doenças do humor e ansiedade, como o COMT (catecol-O-metil-transferase), implicado no metabolismo das catecolaminas, parecem importantes na génese de estados dolorosos crónicos como a fibromialgia. A presença simultânea deste e outros genes em patologias consideradas distintas como a depressão, quadros dolorosos neuropáticos e a fibromialgia, levanta a hipótese de que pelo menos em algumas das suas manifestações clínicas, possam partilhar mecanismos fisiopatológicos4. Outros genes parecem ser responsáveis pelo funcionamento das vias periféricas e centrais que controlam a resposta ao stress endógeno e exógeno.
O Sistema Nervoso Central
Existe ampla evidência de que a resposta ao stress, que é da responsabilidade do Sistema Nervoso Autónomo (SNA), com extensa colaboração dos sistemas Endócrino e Imune, está profundamente perturbada na fibromialgia. São achados clássicos, um hiperfuncionamento do Sistema Nervoso Simpático, um hipofuncionamento do Parassimpático e perturbações do eixo hipótálamo-hipófiso-supra-renal (redução da síntese do cortisol e diminuição da intensidade da resposta em situações de stress). Para alguns autores o hiperfuncionamento simpático será suficiente para explicar a totalidade do quadro clínico da fibromialgia pelo que a consideram uma doença deste sistema, que se desenvolveria em doentes geneticamente susceptíveis, expostos a um stress agudo extremamente intenso ou crónico mantido durante muito tempo. Daí adviria a constatação de que muitos doentes com fibromialgia têm antecedentes de neoplasias, morte de familiares próximos, tentativas de violação ou vivem em ambientes particularmente adversos, por litígio com familiares ou alcoolismo do cônjuge5.
O SNA tem a responsabilidade de adaptar continuamente o seu funcionamento às múltiplas influências internas e externas, que se fazem sentir continuamente sobre o organismo, de forma a assegurar o equilíbrio dinâmico da homeostase. Mas um stress mantido de forma contínua durante muito tempo e a correspondente resposta simpática de adaptação (mediada pela epinefrina, norepinefrina e dopamina) que se faz sentir permanentemente nos órgãos-alvo e é denominada por sobrecarga alostática (de alostase que significa manter a homeostase através da mudança) têm custos para o organismo. Estão bem descritas as relações entre o stress e perturbações metabólicas como a obesidade visceral, a diabetes tipo II e a aterosclerose, por via da activação crónica do eixo hipotálamo-hipófiso-supra-renal6 e é sabido que a alostase compromete o funcionamento do sistema imune, gerando maior susceptibilidade a infecções, baixa da resposta imune às vacinas, reactivação de infecções herpéticas e atrasos na cicatrização7. Na mesma linha, o hiperfuncionamento simpático favorece o desenvolvimento de disritmias ventriculares e de morte súbita, enquanto que formas de inibição dessa actividade (estimulação da medula espinhal dorsal, ß-bloqueantes e eplerenona – inibidor da aldosterona) reduzem esses eventos e a motalidade8. A recente descrição de uma forma de miocardiopatia designada por balonamento apical transitório do ventrículo esquerdo (ou miocardiopatia de Takotsubo) apoia o conceito da profunda influência que o hiperfuncionamento simpático exerce sobre a função miocárdica. Trata-se da ocorrência simultânea de uma hipercontractilidade da base do ventrículo e relaxamento completo com balonamento da ponta (conferindo na angiografia uma silhueta ventricular semelhante à dos potes cerâmicos utilizados como armadilhas para polvos – denominados takotsubo em japonês) em doentes com níveis plasmáticos elevados de catecolaminas (epinefrina e metanefrina), após sofrerem um stress psicológico importante9.
Limitações
Uma importante limitação que se levanta ao estudo e compreensão da fibromialgia é a impossibilidade de lhe aplicar o modelo explicativo linear-reducionista que tem caracterizado a medicina moderna. Este modelo caracteriza-se pela tentativa de explicação de cada complexo sindromático (sinais e sintomas) pela existência de uma determinada lesão anatómica ou anomalia de um ou mais exames complementares. Esta forma de reflexão foi responsável pelos maiores avanços da medicina moderna na compreensão e explicação de grande parte das patologias, que habitualmente associamos a anomalias encontradas em exames laboratoriais, de imagem (Rx, Eco, TAC, RMN) ou outros (histologia, provas funcionais, etc ). Se bem que o estudo do SNC dos doentes com fibromialgia, por RMN e RMNf, demonstre alterações funcionais (concentrações de neuromediadores e fluxo sanguíneo regional) e anatómica (atrofia da substância cinzenta, interconectividade entre neurónios e diferentes regiões cerebrais)10, a compreensão desta e outras patologias complexas, requer novas ferramentas e uma outra forma de pensar.
A fibromialgia é uma entidade complexa, não apenas no sentido semântico (complicada) mas na sua dimensão físico-biológico-matemática. A teoria da complexidade defende que o mundo é constituído por muitos sistemas ditos complexos, porque permanentemente mutáveis e adaptando-se em contínuo às condições do meio, por uma série imbrincada de mecanismos de feedback negativo e positivo. O Sistema Nervoso Simpático, é um exemplo de sistema adaptativo complexo que apresenta um comportamento aparentemente aleatório e imprevisível (caótico), que deriva das múltiplas inter-relações entre os seus diferentes componentes. Esse carácter imprevisível deriva da adaptação contínua à variação das suas condicionantes e do facto de que as interacções entre os seus componentes, desencadeiam novas propriedades (uma característica designada por emergência), impossíveis de prever mesmo estudando aprofundadamente cada um dos seus componentes de forma isolada, porque só se manifestam no decurso do funcionamento pleno do sistema. Dessa forma, nos sistemas complexos, o todo (o resultado final do seu funcionamento) é sempre maior o que a soma das acções dos seus componentes. Há mesmo quem defenda que a vida é uma propriedade emergente do funcionamento integrado dos diferentes sistemas que constituem o organismo humano.
A variabilidade contínua dos sistemas complexos significa capacidade de adaptação e resistência e é sinal de saúde do sistema. Ao contrário, a perda dessa variabilidade significa doença e, se não corrigida, pode levar à morte. É o caso da perda da variabilidade das características espacio-temporais da marcha, que se associa a um maior número de quedas ou da relação entre a perda da variabilidade da frequência cardíaca e a morte, nos doentes com insuficiência cardíaca12. Recente evidência demonstra que na fibromialgia existem perdas da variabilidade da actividade do sistema nervoso simpático e do sono13.
O estudo da fibromialgia confronta-nos com realidades dificilmente suspeitadas até recentemente. Desde logo, a evidente interligação entre o SNC e outros sistemas orgânicos, que tornou obsoleto o paradigma da separação mente/corpo, que durante mais de 200 anos atrapalhou o desenvolvimento da medicina. A descoberta do fenómeno da sensitização central, por seu lado, constituiu uma verdadeira surpresa por atestar que o SNC não é apenas um órgão de transmissão e elaboração da resposta à dor, mas pode ser ele próprio o local de origem e perpetuação da dor. A percepção de que em muitos quadros clínicos existe uma co-responsabilidade fisiopatológica de vários sistemas orgânicos, incluindo o SNA, que actuam em rede (network), aproximou-nos da realidade biológica e tem implicações profundas na forma de pensar a doença e o tratamento. A dificuldade de integrar estes novos conceitos no raciocínio clínico e a rudimentaridade dos exames complementares disponíveis para qualificar e quantificar muitas destas vertentes clínicas, têm dificultado a conceptualização teórica da fibromialgia e sem conceptualização teórica não é possível desenvolver um programa de soluções terapêuticas apropriadas e eficazes.
Dr. Rui Leitão